domingo, 2 de janeiro de 2011

Dia 14/12/2010 – Terça-feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra

Saímos cedo para Vila Caiçara, pertencente à administração de Borba. A comunidade tem uma rua só, de quatro metros de largura. Não há carros nem motos e carroças, apenas bicicletas. Durante o dia a maioria da população é composta de mulheres e crianças, aliás, muitas crianças mesmo! Logo que chegamos era possível notar a multidão de crianças no barranco nos espiando. Em poucos minutos já estavam grudadas nos produtores, ajudado a divulgar as apresentações às 18h ao lado da Igreja. O entorno da Igreja era bem cuidado e limpo, o piso e a estrutura do largo eram perfeitos para apresentar teatro de rua.
A localidade em determinadas partes ficava aproximadamente sessenta metros de altura do nível da água do Madeira. Um barranco gigantesco para subir com o material. O peculiar daqui é a quantidade de árvores frutíferas plantadas a beira da estrada, todas possuem um dono e os demais cidadãos não tocam nas plantas sem autorização deste. Vrena conseguiu muda da árvore de cuia. Vrena comentou que existe o carité e a cuia. Carité é mais usado para fazer utensílios de cozinha e artesanato, já a cuia, em geral, somente para servir o tacacá e é raro encontrar árvore de cuia em Porto Velho, só a de carité.
Perto do final da manhã quando já estavam agendadas apresentações do Manjericão e do Nivaldo, Chicão me convidou pra pescar ali mesmo do convés do barco, no segundo piso. Mal tinha me preparado com a linha e anzol Chicão já foi puxando o maior peixe pescado na jornada até o momento. Um João Branco de meio metro de comprimento, bem pesado. Logo não demorei pra puxar um também e em pouco mais de uma hora já tínhamos um panelão lotado de peixes grandes. A melhor pescaria que fizemos.
Enquanto estivemos pescando a Anelise e Pão de Queijo foram convidados pela menina Vitória, que não havia desgrudado da Ane durante a divulgação das apresentações, pra registrar a presença de um macaco prego, o “Chico”. Depois foram ver o filhote de veado fêmea “Bibi”, que mesmo solto na mata se acostumou a vir nos fundos do terreno da casa da Jennifer pra tomar mamadeira. Anelise mais tarde me mostrou o vídeo que gravou e lá estava Bibi sendo amamentada numa pequena mamadeira pelas mãos de Jennifer. Uma jovem índia, linda, cuja imagem lembra o estereótipo de beleza da índia brasileira que se mostra nas mídias. É! Caiçara tem muitos encantos. Mais tarde Jennifer e seu namorado foram nos assistir e citamos na cena de entrada a Bibi como atração de equilibrismo entre os animais (que nunca aparecem) do circo.
Após o almoço vi uma cena que me comoveu muito, fez lembrar os tempos de pescaria na infância com meu pai e tios. Havia um pai com quatro filhos, um menino de uns três anos de idade, duas meninas de aproximadamente 06 e 09 anos, e o menino mais velho parecendo ter 13 anos, todos numa canoa junto ao barranco numa área de água rasa. Levantavam a rede de espera que pareceu ter deixado ali a noite toda armada, naquele canto esquecido junto às outras canoas carcomidas pelo tempo. Mas percebi que não era só para recolher os peixes da rede, o pai ensinava os mais novos como levantar e com que velocidade as partes da rede que contem peixe. Precisava certa paciência para manter o peixe preso na malha da rede. Dizia que quando levantar a rede e estiver mais pesada é peixe grande e que esta parte da rede deve ser alçada para dentro da canoa e só então empurrar o peixe com a mão para ele deslizar no nylon da malha no sentido do rabo para cabeça, assim sairia facilmente. Continuava explicando, se houver um galho ou toco de madeira preso na malha deve-se tirar com o mesmo cuidado do peixe para não arrebentar a linha que depois daria muito trabalho pra consertar e não teriam rede na água para pescar.
Bah! Uma lição de vida, transmissão de conhecimento e tudo mais que se possa imaginar. Via brilhar nos olhos do mais novo quando a rede tinha peixe, uma das vezes puxaram um de tamanho médio e ele vibrava naquela pescaria num canto esquecido do Madeira. Assisti ali a uma aula-espetáculo ou talvez a uma oficina ou uma lição de vida que já tinha esquecido. O que presenciei foi os ensinamentos e a memória viva passada de pai pra filhos, e foi sem dúvida parte do Banzeirando.
Lá pelo inicio da tarde chegou ao barco uma liderança comunitária avisando que havia ligado para a central de energia e não voltaria no dia de hoje. O pessoal havia comentado que só existe um lugar em toda comunidade que funciona celular de uma operadora, embaixo da Mangueira em frente à Escola. Chicão pensou melhor e solicitou a ela que nos ajudasse então a divulgar um novo horário ainda de dia, as 16:30.
Chegada à hora de apresentar Nivaldo foi à frente pra começar com o Dorminhoco, logo também estávamos prontos e subimos o barranco que levava primeiro a um campo de futebol com acesso as árvores frutíferas de onde se via a estrada. Aguardamos uns cem metros do local, Chicão veio ao nosso encontro e convidou para irmos ao camarim, o que nos provocou risadas, perguntei onde estava o camarim e Chicão apontou para uns bancos de concreto junto ao barranco, fomos até lá. Era o camarim do Banzeirando. Ali fora estruturado o espaço para ser um mirante da comunidade. Sensacional, estávamos à sombra de mangueiras, cupuaçus e cuias. Podíamos dali ver o Madeira de um lado ao outro e sua extensão até onde a vista alcança, quase infinita. Bem como toda sua imponente correnteza forte com muitos pedrais. Pedrais são aglomerados gigantescos de pedra jacaré nas margens e no meio do rio. Apesar do calor soprava um vento agradável, um camarim perfeito para o teatro de rua.
Enquanto Nivaldo provocava o riso alto da platéia a cada três minutos percebemos o temporal que se armava e a dúvida era se viria ou não em nossa direção. Quando estava imaginando de onde partiríamos com o cortejo vi que um senhor dizia que a chuva não viria pra Caiçara, pois ontem um temporal, que veio de Borba, já havia destruído grande parte da comunidade. Torci pra ele estar certo. Tínhamos um plano B, a sede coberta da vila, um pouco suja, mas poderia acolher o publico tranquilamente. Aproximadamente as 17:30 começamos um pequeno cortejo e logo no inicio eu como apresentador pedi licença a todos: - Senhoras e senhores, crianças e crianços, cachorros e cadelas, demais seres presentes aqui hoje, pedimos licença para apresentar nossos números circenses e o espetáculo O Dilema do Paciente. E se São Pedro resolver participar daremos juntos um jeito na situação.
Dito e feito, em menos de trinta minutos no início da cena da doutora (Anelise) e Brigela (Samir) inicia um chuvisqueiro que logo vira uma chuvarada. Foi uma correria danada, cem metros rasos, eu quando recolhia o tarol vi em meios aos riscos da chuva um menino correndo e rodando no ar o halteres do Herculino e pensava “Caramba! Aquilo é isopor e se solta facilmente!”. Também no meio da multidão o Samir corria gesticulando, como se o Brigela estivesse socorrendo o povo de um tsunami. A Anelise caminhava rapidamente com a sombrinha colorida da Mulher Barbada protegendo a gaita (sanfona) da chuva que agora engrossava de vez. Nem sei quem correu com o bumbo, as mochilas e o estandarte, mas logo estávamos organizando o público na sede coberta enquanto a líder comunitária varria o lixo de uma festa do fim de semana.
Continuamos com a cena da doutora Lascívia, depois a cena do doutor Nervalgina e por fim o monólogo final do Brigela. Salão lotado, a chuva passou e o calor diminuira, encerramos de forma espetacular mais uma peripécia no Banzeirando. Foi literalmente a situação máxima do ditado popular que o teatro de rua conhece muito bem “quem tá na chuva é pra se molhar”. Após a apresentação estávamos encharcados de suor e chuva, mas alegres com o feito. Depois de uma péssima recepção ao projeto na cidade de Borba, agora estávamos de alma e figurinos lavados e o oficio cumprido neste dia atípico.
Voltamos para o barco, pois já escurecia na vila e o blackout era geral. A janta estava pronta e lá estavam fritinhos e crocantes os peixes que pescamos acompanhados de rodelas de limão pra destacar o sabor destas iguarias do local. No convés de cima do barco curtimos uma noite estrelada, toquei umas músicas do raulzito, pra variar, no violão que o Vrena me emprestou pra jornada. Fomos dormir cedo, pelo menos pra mim dormir 21:30 é cedo, mas sem energia elétrica da terra fica complicado, o barulho do motor gerador no barco é altíssimo. Silêncio total no barco e em terra, somente a correnteza do rio a nos embalar, logo todos dormem.
Amanhã vamos para Nova Olinda do Norte, mais uma longa viagem.
Vamo que vamo!!

Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão


Dia 13/12/2010 – Segunda-feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra


Dia longo e estranho. Passamos o dia na calmaria das águas, entre 06h até as 16h navegando tranqüilo, no meio do caminho passamos pela famosa localidade do “Cantagalo”, conhecida como a comunidade que foi soterrada ou sugada pelas águas no início do século passado. O mais impressionante é que há realmente no local uma espécie de enseada ou baia com um tamanho exato das comunidades ribeirinhas. Algumas versões falam que no subsolo habitava uma cobra grande que numa madrugada de festejos “exagerados” ela acordou e toda localidade foi sugada pra dentro das águas e somente uma senhora e uma criança sobreviveram. O nome diz o povo daqui que se deve ao fato de ainda hoje se ouve o galo da madrugada cantar embaixo da água.
Passamos tranquilamente pelo Cantagalo, mas foi só chegar à cidade de Borba e sua imponente estátua de Santo Antônio de Borba, lá pelas 16:30, para um temporal intenso desabar. Mal atracamos e logo a chuva e o vento empurravam todas as embarcações contra o barranco alto. Foram quase duas horas de tempo ruim, findado a tempestade o comandante resolveu levar a embarcação para outra parte mais segura do barranco. Mas infelizmente já era noite e o escuro prejudicou muito nossa pernoite na cidade que mais parecia uma cidade abandonada. Somente a missa noturna mostrava a existência de vida humana na cidade naquela hora.
A chuva voltou torrencialmente e a cidade ficou com aspecto sombrio, via-se somente o gigantesco Santo, talvez uns 50 metros de altura, iluminado com luzes de natal. Chicão após analisar que a cidade não proporcionava acolhida aos barcos não disponibilizando pontos de energia elétrica, todos os barcos estavam às escuras, o melhor seria deixar de lado os dois dias na cidade em troca de um dia na vila próxima daqui, a vila Caiçara. Ficaremos esta noite aqui e logo cedo partimos para Caiçara, que o nome me agrada muito, tem nome indígena e não de santo.

Vamo que vamo!!


Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

Dia 12/12/2010 – Domingo / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra


Dia de comemorar o feito na cidade, churrascada, música e muita pescaria e banho no rio Aripuanã. Povo teatreiro se divertiu muito neste dia escaldante. Baixaram uma bóia do teto do barco e subiram uns oito marmanjos. Pareciam náufragos do teatro de voadeira. Enquanto isso o comandante havia mandado aos empregados lavarem a embarcação por fora, uma escovação danada ficou brilhando o casco. Dia todo nesta função, uma escovada e um mergulho.
A Anelise veio me contar que durante a noite um senhor, ao saber da nossa presença e função nesta cidade, veio conversar com eles sobre a questão das hidrelétricas. Esta é uma questão pouco abordada pela população ribeirinha. Este senhor que faz parte de uma empresa de energia disse que o povo anda meio descontente, mas tardiamente, pois já concordaram na construção das duas hidrelétricas em troca das promessas de emprego, que na verdade poucas se efetivaram. Mas esquecem da questão do impacto ambiental que causarão, desde a seca do rio até a dificuldade de sustentabilidade de muitas cidades do Madeira e afluentes. A previsão de inauguração da primeira será no final de 2011. Disse este senhor que seria muito importante falarmos destas questões com nosso público. Mas entendemos que este assunto é muito delicado para um grupo chegar, indagar, discutir e depois partir tendo ficado poucas horas na localidade. Mas na medida do possível conversamos com os moradores por onde passamos.
Chegada a hora da nossa apresentação São Pedro resolveu tomar a cena com um leve chuvisqueiro que depois de engrossar voltou a diminuir, mas foi o suficiente para tomarmos a cena na praça com um cortejo. A apresentação foi tão boa e de grande participação de público que se alongou com improvisos de todos. Na seqüência veio a Guadalupe de Monteserrat, esmerilhou com suas piadas e histórias. No final agradecemos a acolhida sublime da cidade e também do comércio ali próximo, que o Chicão havia conversado para baixar o volume (ensurdecedor) e o proprietário achou melhor desligar, que maravilha. Após fomos para o barco, na manhã seguinte partiremos para cidade de Borba.

Vamo que vamo!!


Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

Dia 11/12/2010 – Sábado / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra


Dia nascendo e notei melhor o pórtico da cidade no final da escadaria, dizia Sejam bem vindos em três idiomas, mostrando que a cidade é ponto de turismo mundial. Aqui as águas são claras, chamadas “de águas pretas” aproveitamos o dia pra lavar as roupas brancas e mais claras. Alguns passaram boa parte do dia pescando no entorno do barco. Como ficamos ancorados na balsa/porto da cidade podemos conferir a quantidade de pessoas e mercadorias que circulam por estas bandas, impressionante!
A tarde foi-se indo e a produção foi para praça montar o equipamento de som para o Léo e o Tancredo às 19h apresentarem seus trabalhos. Antes, o torneio que hoje era masculino já estava rolando a bola por horas, perto do final. Quando o Léo começou o público já estava bom, mas quando o jogo encerrou tivemos o público recorde do Banzeirando, um absurdo de tanta gente empoleirada por toda praça. Seu Afonso Xodó começou elogiando o público que ali estava diante do sorriso do gato de Alice, mostrando a lua minguante resplandecente no céu estrelado de Novo Aripuanã, numa alusão a história de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. Mas antes do Léo encerrar sua apresentação mais longa até aqui, 1h20, houve uma briga e uma correria se formou, sorte que não durou muito e tudo se restabeleceu. Na seqüência Tancredo chegou com o velho Justino e suas poesias e histórias matutas. O impressionante é sua capacidade de memorizar todas as longas rimas e entonações na voz e ritmo do velho.
Findada as apresentações e terminada a janta os arteiros se espalharam pela cidade para refrescar a garganta. Amanhã será a vez do Manjericão e Nivaldo Motta, nossa primeira dobradinha, o Sul e o Norte dividindo a praça.

Vamo que vamo!!

Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

Dia 10/12/2010 – Sexta-feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra


Dia clareou e já estávamos em viagem, outra longa perna de navegação até Novo Aripuanã. Dia 10 de Dezembro, dia do Palhaço. Ríamos muito durante o trajeto, de tudo, parecíamos aquele público nas apresentações de circo, dos filmes sobre circo, do Chaplin e do Fellini, tamanha alegria de banzeirar por estas águas.
Chagamos lá pelas 16h na cidade que fica no Rio Aripuanã, que tem sua nascente no Estado do Mato Grosso. Chicão e demais integrantes d’O Imaginário descem primeiro para produzirem as apresentações. No final da tarde saio pra dar uma caminhada em terra, conhecer a cidade, logo chego à praça central e ouço bem alto num sistema de som o nome Banzeirando. Vou na direção do som e chego na quadra de concreto com arquibancadas cheias de torcedores, junto ao prédio da Prefeitura Municipal. Vejo que esta ocorrendo um jogo de futebol feminino e ouço novamente o narrador do jogo divulgar apresentações do Projeto nos dias 11 e 12 às 19h na praça central. Observando melhor o público do jogo encontro Chicão Santos e Léo Carnevale curtindo o torneio. Já haviam tratado tudo com dois secretários do município que estavam ali no jogo. Tínhamos o apoio da Prefeitura para as apresentações. Foi uma recepção extraordinária, teremos no sábado e domingo carro de som divulgando o Projeto por toda cidade.
Saímos antes de o jogo terminar pra divulgar mais um pouco, Chicão entrava loja por loja pra entregar cartazes, convidando e pedindo divulgação aos clientes. Sempre funciona a divulgação boca a boca. Numa das lojas de miudezas e celulares encontramos o “Caco” um Mico Leão enfurecido com os estrangeiros. Caminhava pelo balcão de celulares gritando fininho como se protegesse ou oferecesse determinado celular. A dona disse que além de estranhar a gente ele protegia a caixa de bombons, sua guloseima preferida. Depois de não comprar os produtos ofertados da loja do “Caco”, fomos para uma esquina onde duas senhoras vendiam Tacacá, eu e Chicão tomamos um delicioso Tacacá enquanto falávamos do Banzeirando. Tacacá, pra quem não conhece, é um prato típico do norte do Brasil, a meu ver semelhante à sopa caseira do Rio Grande do Sul, mas sem macarrão. Consiste num caldo grosso de água, sal, goma (mingau) de mandioca, jambú, camarão seco e outros temperos e molhos conforme a preferência do gourmet. Jambú é uma planta que dentro do Tacacá se assemelha a couve da sopa gaúcha, mas este produz certa dormência na boca. Detalhe, ele é servido numa cuia e comido com um palito, em determinados locais se come com garfou ou colher o que para os mais tradicionais é uma ofensa. Deve-se comer bem quente com um palito e inclinando a cuia pra beber o caldo.
Amanhã começamos a apresentar na praça central rodeadas de comércios, serão duas por noite.

Vamo que vamo!!



Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

Dia 09/12/2010 – Quinta-feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra



Amanhece um dia espetacular, ensolarado, muitas embarcações com produtos chegando, uma multidão de pessoas, são passageiros em viagem e carregadores, o porto se transforma num imenso formigueiro. Léo e Chicão já estavam na escola para a apresentação no meio da manhã. Quando as apresentações são em escolas é preciso ir com horas de antecedência para providenciar camarins, geralmente a sala de orientação pedagógica ou sala da direção, também verificar melhor local e posição no espaço do pátio conforme o número de alunos. Quase meio dia voltaram dizendo que a apresentação foi muito boa e o público estava ótimo.
No meio da tarde foi a vez do Manjericão. Na maioria alunos de ensino médio, estávamos no camarim em preparação quando ouvimos um estrondo seguido de muitas risadas, corremos a porta pra espiar e levantavam um aluno, de estatura grande e peso igual, que ao sentar quebrou uma cadeira branca de plástico. Todos riam dele, mas manteve a pose, escorou no pilar e ficou ali nos esperando. Começamos a apresentação na velocidade mil. Brincamos com o menino da cadeira pra deixá-lo mais a vontade. O público estava afinadíssimo nos aplausos intermináveis, foi atenção total na trama da peça, no final fomos ovacionados. Saiu faísca tchê! A noite foi à vez do Tancredo e do Nivaldo, para um público repleto de adultos. Gargalhavam pontuadamente, no tempo que esses comediantes conduziam. No final todo povo do Banzeirando elogiou muito a limpeza da escola que não possuía lixeiras no pátio. Todo lixo ficava com os alunos ou na lixeira da sala de aula. Ah! Se todas as escolas e alunos deste Brasil fossem assim, a consciência ecológica do povo brasileiro seria outra!
Uma curiosidade interessante. Após nossa apresentação fomos dar entrevista pra Rede Amazônica de TV e um dos repórteres acompanhou o Chicão até o barco para ver se ficávamos mais um dia para novas apresentações e oficinas, mas não podíamos. Depois de um tempo começou a falar da origem do nome da cidade. Há uma festa anual chamada Festa da Deusa, pensei na hora que nome forte para uma festa, lembrava algo ritualístico. É exatamente isso, uma festa de culto a Deusa Mani. Reza a lenda que nasceu uma índia albina e logo todos da tribo acreditaram que era uma Deusa. Por ser branca como a Mandioca, Mani oca para os índios na época, chamaram-na então de Deusa Mani. Assim a cidade, anos depois, foi batizada de Manicoré – Filhos de Mani. Realmente todos na cidade têm marcantes aspectos e traços indígenas.

No período do final da tarde, após a apresentação do Manjericão, quando chegamos “em casa”, no barco, notamos a onipresença da embarcação Comandante Cândido I, de Manaus, a maior que já vimos até o momento, Nivaldo falou com o proprietário e logo um grupo de curiosos já estava lá contemplando e ouvindo atentamente o Seu Candido explicando toda estrutura e seu império de negócios com embarcações. Todos de queixo caído com a rotina necessária para manter esta nave de quase quatro andares para passageiros e um porão para muitas toneladas de produtos. Sem dúvida tínhamos em nossa frente um homem de visão.

Mas o que nos deixou mais embasbacados não foi o fluxo de dinheiro que gera sua frota de barcos e sim o respeito profundo que tem para com seus empregados. É daqueles patrões que come junto com os funcionários, não tem luxo, embora o barco possua camarotes impecáveis. Cumpre pontualmente os pagamentos semanais, após cada viagem faz questão de pagar pessoalmente um por um dos mais de vinte empregados. Se há uma festa no seu sítio, próximo a Manaus, não poupa dinheiro pra ver seus empregados (ou seriam quase sócios?) felizes com a vida que levam. Poderíamos desconfiar do que diz, mas há dois motivos que não deixa dúvida no que fala. Uma delas percebi logo que entramos na embarcação, Seu Cândido estava entre os funcionários e quando levantou pra nos cumprimentar quase não acreditei que ele era o dono daquele prédio flutuante, mais parecia um dos carregadores de pencas gigantes de bananas. Estilo bonachão, simples e cordial. A outra foi o Nivaldo que destacou, Seu Cândido é tão feliz no que faz com empenho e dedicação que está sempre sorrindo. Isso mesmo, até quando o assunto é sério sobre as dificuldades dos produtores e moradores do norte, sobre o Programa Luz pra Todos do Governo Federal, ele está lá com o sorriso estampado de orelha a orelha. Descemos depois de mais de uma hora conversando, nos deu adeus como se fosse um amigo de muitos anos. Nos convidou para quando chegarmos em Manaus conhecer o Cometa, sua outra embarcação que realiza passeios fretados para turismo. Pela descrição parece dar de dez nesta que conhecemos há pouco! Eis um homem feliz com a vida que leva.
Amanhã partimos para Novo Aripuanã. Outra grande cidade do interior do Amazonas.

Vamo que vamo!!




Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

Dia 08/12/2010 – Quarta-feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra

Chicão saiu cedo pra produzir o Projeto na cidade, depois de horas voltou dizendo que hoje era feriado, dia da padroeira do Município, Nossa Senhora da Conceição. Não apresentaríamos neste dia, ficando tudo para dia nove, quinta-feira. Agendou apresentações na Escola Estadual de Ensino Médio Pedro Aguirre, pela manhã será o Léo, à tarde o Manjericão e à noite Tancredo e Nivaldo. No mais do dia foi pra aproveitar e organizar diários, roupas, etc.
Hoje foi dia de Oxum, no sul, mãe das águas nas religiões afro-brasileiras, tenho apreço por este orixá embora eu seja de Ogum (São Jorge no sincretismo). Aproveitei que parte do pessoal foi de voadeira tomar banho no rio Manicoré, de águas pretas, e saudar também a padroeira da cidade. Primeira vez que faço isso, pois não sei nadar e tenho medo de água em grande volume, pelos traumas de quase morrer afogado três vezes na vida. Mas me perguntava por que fazer isso? Entrei na voadeira e Nivaldo em tom de brincadeira logo comentou que eu mesmo com tal medo não havia pegado o colete salva-vidas. Logo entendi minha tranqüilidade ali no meio das águas do imenso Madeira. Porque até aqui sempre tive a impressão de estarmos sendo observados e protegidos. Durante toda a jornada até aqui, houve aquela sensação de um olhar que acompanha atentamente tudo que realizamos desde o dia 22 de novembro. Penso nos olhos desta floresta, a mata e os animais que acompanham, fiscalizam, conduzem nosso querer, que definem de certa forma como serão nossas ações nas águas e em terra. Embora pareça um tanto romântica esta visão, este sentimento de proteção da floresta é inegável pelos acontecimentos mais graves que estamos sendo conduzidos pela mãe das matas e águas na calha principal deste trecho de Brasil.
Chegamos em poucos minutos no rio, próximo do seu final onde deságua no Madeira, a água era muito quente até um metro de profundidade, depois disso ficava bem gelada, impressionante. Junto ao local havia um estaleiro onde aproveitei pra entender como se constroem e reformam estes barcos. Havia um barco em reforma semelhante ao nosso e Pão de queijo pode me explicar tudo que aconteceu no acidente mostrando as peças deste barco. Após, quando estávamos lá curtindo o rio, passou por nós uma canoa com três pessoas a bordo, remando de mansinho, estranhamos estarem assim, pois havia motor na canoa, mas logo esquecemos. Em poucos minutos levamos um susto tremendo com um ensurdecedor tiro de espingarda, eram os canoeiros caçando aves aquáticas. Fiquei observando e vi recolherem a ave, a janta estava garantida. Voltamos ao Nossa Senhora Aparecida I no cair da tarde, após a janta fui na lan house, mas não fiquei muito, pois aqui há queda de energia escalonada, falta em alguns bairros em outros não. Muito estranho, estava no meio de um email e de repente acabou a energia, todos levantaram rapidamente e fiquei com o pen drive grudado no PC sem entender porque da correria de todos. A atendente disse que era assim mesmo e nunca se sabe quando voltará à energia, o negócio é ir embora. Fui para a praça central, encontrei o pessoal numa sorveteria e por lá, onde havia luz, ficamos um tempo. Sequei o jogo do Goiás com o Independiente pela Sul americana de futebol, se o Independiente ganhar o Grêmio Futebol Porto Alegrense, com o quarto lugar no brasileirão, tem vaga garantida na Libertadores. Duas horas depois, após prorrogação e penalidades o Independiente ganha e o Grêmio está na Libertadores da América 2011, sensacional!!!
Outro apagão e a revoada diária de besouros gigantes declara que o feriado terminou pra todos, amanhã é outro dia no Banzeirando.


Vamo que vamo!!


Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

Dia 07/12/2010 – Terça-feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra


Chega nosso 16º dia, passamos da metade da Jornada. Acordo e já estamos em deslocamento para o Distrito de Auxiliadora, os motores em propulsão média anunciavam que levaríamos mais tempo que as duas horas e meia previstas. Chegamos na metade da manhã e todos saltaram do barco como se fossem amotinados, era perceptível a necessidade de todos em tocar no solo.
Estávamos novamente em terra firme, inteiros e como sempre rindo à toa uns dos outros. Em determinado momento em que olhei pra trás e vi o Nossa Senhora Aparecida I inteiro na água, recordei-me da imagem do barquinho feito de Buriti que uma amiga trouxe de presente, do Círio de Nazaré em Belém. Estávamos em Outubro durante o Festival no Theatro Amazonas em Manaus e Wlad me chamou lá da entrada do teatro com o barquinho na mão encenando-o a navegar. Quando o peguei disse que era pra abençoar nossa Jornada. Só agora percebo o quanto é semelhante em muitos detalhes ao Comandante Nossa Senhora Aparecida I. Creio que estamos realmente protegidos.
Desde o deslocamento da outra localidade Anelise e Vrena estavam encantados pelos diferentes tipos de argila, quando chegamos então foi o delírio total por tamanha diversidade de cores: amarela, ocre, vermelha, marrom, preta e outras derivações. Ane teve que conter o desejo de levar quilos de argila, ficou só na imaginação a quantidade de esculturas e as técnicas que utilizaria. Só mesmo esses dois artistas plásticos, escultores de mão cheia, no meio de tantos atores, poderiam entender o valor desse barro colorido.
Quando retornamos ao barco, descemos numa rampa escorregadia de argila, uns 60 metros de altura, tão íngreme que representava aos olhos mais de cem metros. Choveu durante a noite e o terreno ficou perigoso demais. O Comandante Zé Ribeiro escolheu este local um pouco distante do porto/balsa, mais tranqüilo para analisar melhor os danos na embarcação. A rampa argilosa era semelhante a do filme “Fitzcarraldo” (1982), de Werner Herzog, onde mostra a grande façanha de um sonhador no auge do ciclo da borracha no final do século XIX em construir um teatro de ópera na Amazônia peruana. Em determinado momento o aventureiro resolve arrastar o barco a vapor de 160 toneladas para o topo de um morro em plena floresta, uma doidera. Tive a impressão que faríamos o mesmo, içando o barco rampa acima para manutenção.
O distrito de Auxiliadora é pequeno e bem estruturado com lixeiras, ruas largas apesar de não haverem carros, há somente motos bicicletas e um pequeno trator Tobatta que guincha todos os produtos pesados que chegam no pequeno porto/balsa chamado de “Ana Darck”. Lá vimos o Tobatta puxar um enorme freezer, ainda embalado da fábrica. Junto à entrada da localidade há conservado um seringal dos tempos da extração do ouro branco, registramos por fotos aquelas profundas canaletas conservadas pelo tempo. Caminhando um pouco mais descobrimos que a energia do distrito é produzida por um enorme gerador de força da Powertech. Uma hora mais tarde o encontramos, realmente uma potência o gerador, de uma marca de respeito e valor altíssimo, um investimento significativo. No momento Auxiliadora está em processo de emancipação da Cidade de Humaitá.
Quando vimos o tal gerador, Thallisson, nosso homem informática, ficou muito impressionado com a estrutura. Aliás, Thallisson é o único bailarino na equipe, integrante do Grupo O Imaginário, vive nos lembrando que a dança existe. Seja caminhando na mata, se equilibrando nos galhos e pontes ou simplesmente dançando em qualquer lugar, basta ter música. É nosso professor de dança e informática, sabe os atalhos nos passos ritmados e no notebook. Cursa Ciências da Computação na UNIR, Universidade Federal de Rondônia. Também é o responsável por colocar todo material no blog do Banzeirando. Também executa o trabalho hercúleo de sintetizar partes do Diário de bordo e terra, que escrevo prolixamente.
Voltamos ao barco perto do meio dia, seu Zé Ribeiro e demais empregados estavam juntamente com outros moradores do distrito trocando a hélice que havia quebrado. A árvore gigantesca extirpou completamente duas das quatro pás da hélice feita de ferro fundido maciço além de arrancar duas peças importantíssimas: o Pé de galinha, uma estrutura de proteção do leme, e a Barra, estrutura de ferro protetora de todo sistema de navegação submerso. Ou seja, navegamos por quase quatro horas com grande precariedade na maquinaria, como se andássemos num carro com os pneus furados e o motor pifando. É impressionante a capacidade de resistência e sagacidade de quem trabalha com embarcações diante das intempéries. O pessoal trabalhou na água barrenta sem enxergar um palmo diante do nariz, só com o tato. Não há óculos nem máscara para respirar pelo nariz, usam somente um bocal para respirar o oxigênio vindo por uma mangueira da bomba de ar comprimido.
Fui pesquisar sobre a diferença de coloração da água do Madeira e dos outros rios da região e descobri que devido a isso também são diferentes nos nutrientes para a fertilização das planícies de inundação. Goés, no livro “Arqueologia da Amazônia”, afirma que pela tipologia os rios cuja nascente se dá nos Andes (de juventude geológica) são conhecidos como “de água branca”, devido à coloração barrenta, cheia de sedimentos ricos em nutrientes. Estes contem mais nutrientes que os rios “de águas claras” ou “de águas pretas”, dependendo da coloração, cujas nascentes são no planalto das Guianas ou no planalto Central, como por exemplo, os rios Negro e Xingu, respectivamente, têm suas áreas de cabeceiras em regiões geologicamente mais antigas, fracas em nutrientes.
Chicão e o comandante, em breve reunião, decidiram que seria melhor zarpar para Manicoré, cidade onde poderia ser feita a aquisição das partes perdidas e colocadas num pequeno estaleiro da cidade. Assim seguimos em nossa segunda maior distância sem parada. No meio do caminho fomos abordados pela equipe da marinha do Brasil que fiscaliza a região. Passou duas vezes por nós um helicóptero da marinha e logo em seguida chegaram numa lancha, todos armados até os dentes com coletes e rádios transmissores. Entraram na embarcação e logo foram conversando com o Comandante. Pediram os documentos da embarcação e a sua finalidade por estas águas, checaram os dois pisos do barco, materiais e pessoas. Antes de partirem aconteceram situações curiosas pra não dizer hilárias. Quando o capitão da Marinha percebeu no piso superior o figurino da Guadalupe, um vestido rosa brilhante cheios de detalhes típicos da Guada, ele foi direto pegar com a mão perguntando ao comandante o que significava aquilo. Seu Zé Ribeiro explicou que era do pessoal do teatro. Em seguida perguntou pra que servia, mas Seu Zé nem começou a dizer e logo o capitão, ao ver o Samir filmando ele atraído pegando e passando a mão no vestido, saiu logo dizendo em voz grave e alta que não era pra filmar! Chicão até achou que o capitão da marinha referia-se a cigarro e levantou da rede num salto perguntando “quem está fumando aqui?”. Realmente, na nossa barca mambembe, até a marinha entrou numa situação cômica.
O capitão desceu junto com os homens armados que lhe faziam guarda, passou por mim e perguntou se eu era estrangeiro. Disse que era gaúcho, ele riu e perguntou se eu conhecia o vinho Jota Pe, pois havia ido no Município de Rio Grande e provado o vinho que gostou muito. Falei também dos vinhos Canção e Sant Germain, vinhos de valores acessíveis e bons como o Jota Pe. Falou que provaria na próxima, rimos, e ele embarcou na lancha verde oliva cheia militares. Logo chegamos a Manicoré, cidade grande do interior do Amazonas, está entre os dez melhores PIBs do Estado. Amanhã Chicão sairá cedo pra ver locais para apresentações.


Vamo que vamo!!


Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

Dia 06/12/2010 – Segunda-feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra


A Calmaria do dia


Logo cedo começa nosso 15º dia, metade da Jornada. As 05:30 é a saída do barco da cidade de Humaitá para a cidade de Auxiliadora, pequena localidade do Amazonas antes de outra cidade grande chamada Manicoré. Esta foi nossa maior viagem de uma localidade a outra até o momento, um dia inteiro. Todos aproveitam pra colocar o sono em dia, lavar roupas, arrumar as malas e bolsas, escrever relatórios e estudar, analisar o material coletado por fotos e vídeos. Tenho procurado nos dias de pouca correria manter meu treinamento de ator em dia. Hoje acrescentei à minha dança pessoal movimentos diferentes com base no que venho observando das pessoas e animais da região. Comecei com alongamentos, respiração, saltos e giros, sons e voz, depois durante a movimentação livre e improvisada, que chamo de dança pessoal, baseada nos termos da Antropologia Teatral de Eugenio Barba e o Grupo Odin, passei a somar movimentos do ambiente da floresta. São micro ações de partes do corpo que se aproximam dos movimentos dos botos, aves e o que tenho no imaginário dos índios, pois ainda não os vimos e pelo que percebo não veremos. São mímeses, em processo de investigação, do macaco, da onça, do lagarto, do povo ribeirinho, dos peixes: candiru e mandim, do lançar flecha e lança, etc.
Pela tarde, olhando de uma margem a outra apenas floresta e mata dos seringais, vez por outra uma casa ou barco de garimpo. Aproveito pra aprofundar a pesquisa sobre este vasto território amazônico consultando dois mapas da região para ver onde estávamos - tenho por hábito comprar mapas dos Estados que visito- na ausência de internet são eles que estão ajudando o Chicão e o comandante na definição de mais localidades de parada do Banzeirando. Também leio o livro que adquiri em Manaus há dois meses quando estive participando como jurado do 6º Festival de Teatro da Amazônia. Arqueologia da Amazônia, de Eduardo Góes Neves, 2006, Jorge Zahar Editor. O autor escreve sobre o meio físico a partir de pesquisas profundas realizadas por anos a fio na região, fundamenta o quanto é falsa a idéia de um lugar selvagem e intocado.
Góes menciona que longe da calha principal dos rios, estão localizadas atualmente a maioria das terras indígenas e nas terras ocupadas por ribeirinhos à margem dos rios encontram-se grandes sítios arqueológicos que demonstram ocupações indígenas de grande porte no passado. A Amazônia é ocupada há mais de 10.000 anos, em alguns casos por populações de milhares de pessoas. Desmistificando essa terra de “natureza intocada” e “última fronteira”.
Outras questões levantadas pelo autor são a política e ambiental, sobre o desmatamento, os conflitos por recursos naturais e a urbanização descontrolada, trazendo consigo as conseqüências de nossa dita civilização.
Esse problema ecológico é um fato que mencionei outro dia por aqui, há uma enxurrada de dragas no rio Madeira, incrível a detonação do leito e das margens pela sede humana por riquezas. O descaso do ser humano também é um agravante, vi muitos barcos chegando a Humaitá e as pessoas atiravam no rio embalagens plásticas, latas de cerveja, garrafas de refrigerantes como se fosse algo natural. Tínhamos vontade de ir à embarcação e falar do assunto, mas precisaríamos de seguranças e muitas horas para tal ação. No entanto há um fator curioso do processo ambiental por aqui. Na época de cheia do rio Madeira, quando transborda por longo período todo lixo é devolvido à terra, acredito que é aí que os governos poderiam iniciar ações mais efetivas de educação ambiental.
Outro ponto interessante levantado pelo autor sobre os rios da região é o quanto as cheias são benéficas para a floresta se desenvolver e a população ribeirinha praticar a agricultura. Quando ocorre o desbarrancamento dos terrenos adjacentes as áreas de cabeceiras dos rios, onde os sedimentos são ricos em nutrientes, estes são levados pela erosão e “... seu transporte pelos rios e conseqüente deposição em áreas mais baixas leva à fertilização destas a cada cheia anual, em um processo semelhante ao do rio Nilo, no Egito.” Muito interessante pensar que esta erosão natural que vejo todos os dias por aqui promove justamente um ciclo de sustentabilidade do complexo amazônico.


A turbulência da noite


A noite cai e ainda não chegamos a Auxiliadora. Mesmo sabendo dos perigos do Rio Madeira o comandante mantêm a navegação, restam duas horas para chegada. O Rio Madeira tem esse nome justamente pela grande quantidade de madeiras que vão de galhos e árvores pequenas até troncos gigantescos que descem com velocidade máxima em determinadas épocas. Comparando seriam como icebergs no degelo, às vezes vemos apenas uma parte do tronco e o restante pode ser muito grande. Um perigo iminente sempre! Foi isso que nos aconteceu lá pelas 20h, após a janta, um acidente deste porte. Estava falando com Chicão na lateral do barco junto às portas dos camarotes quando de repente passam galhos secos enormes batendo na caiçara. Corremos pra ver o que era e notamos os galhos sumindo no escuro. Corri pro segundo piso do barco pra ver se ainda enxergava o tamanho da árvore. Todos por lá tentavam o mesmo quando de repente um baque segurou o barco Comandante Nossa Senhora Aparecida I, leve tremor e uns gritos vieram do piso inferior. Estamos num blackout total. Desço correndo pela escada e vejo o pessoal junto com a filha e neta do comandante, ambas chorando, foram elas que gritaram de medo com a sacudida. O comandante parou o barco, pois este perdeu força: tensão no ar. Todos correm com suas lanternas de um lado para o outro pra ver o que aconteceu. Marcelo e Pão de Queijo mais o seu Zé Ramalho correm pra voadeira e saem a mil rodeando o barco. Todos muito apreensivos, não havíamos visto tal nervosismo nestes três. O barco vai parando, um breu total na noite. A energia do barco volta fraca, mas oscila por vezes numa ameaça de novo blackout. Só ouvimos o barulho das vozes dos amigos na voadeira. Percebemos as margens distantes do rio pelas lanternas dos pescadores. Via no entorno da embarcação temporais se armando, muitos raios no horizonte clareando a mata, pensei comigo se vierem na nossa direção vai ser um grande estrago. Percebi que o pessoal ficou um pouco perdido, onde estaremos? Há nestas embarcações um farol potente que auxilia na hora de aportarem ou quando se navega a noite, é manipulado manualmente pelo comandante. Mas não foi fácil demarcar um local para aportar e verificar as avarias, que suspeitei terem sido de boa proporção.
O barco Comandante Nossa Senhora Aparecida I passa por dificuldade, motores com menos de meia força para se deslocar quase que parando. O pessoal da voadeira volta e conduz empurrando o grande barco para um barranco desconhecido, a tensão continua em todos. Pão de queijo na sua empolgação de sempre apenas diz: - Calma gente! Ó, tá de boa, é normal isso acontecer. Já passei, ó, por mais de uma destas paradas ó! Deve ter sido poca coisa ó! Foi uma árvore das grande, mas já saiu não tá mais ai ó! O Márcião fica tranqüilo meu irmão. Depois vamo toca aí, ó, um violão de boa olhando as estrela! Tá beleza ó! Pão de queijo é uma figura, procura manter a calma até nessas horas, sempre rindo de tudo.
Chegamos nessa margem de alguma localidade desconhecida por volta das 20h e só víamos algumas lanternas de pescadores piscando para dizer que ali tinha profundidade suficiente pra aportar o barco Comandante Nossa Senhora Aparecida I. Quando vimos havia pescadores em três voadeiras nos auxiliando, empurrando o barco para o barranco mais adequado. Via-se ali uma solidariedade do povo das águas, assim como os caminhoneiros ajudam uns aos outros na auto-estrada. Situação que raramente vemos em determinados locais deste Brasil. Operação voadeira terminada, seu Zé ramalho que já estava de volta ao barco pegou umas cordas e duas estacas e pediu que jogássemos pra ele assim que pulasse nas águas e fosse à margem argilosa. Mas havia outro problema por ali, descobriu-se que é a localidade que mais tem jacarés no Madeira e o local era cheio de juncos na água, lembrava aqueles lugares propícios para os batráquios viverem (sapos e rãs, prediletos dos jacarés). Seu Zé pulou na água, desapareceu por segundos e retornou nadando mais a frente. Iluminávamos todo barranco e seu Zé batia com as estacas na argila para cravar mais fundo, conseguiu com uma e logo foi amarrando a corda. Pão de queijo e Marcelo estavam ainda na voadeira contornando o barco verificando o local. Logo os dois vieram ajudar seu Zé que antes de pular disse: - É nessas horas que a gente vê quem é macho!
Enquanto Marcelo e seu Zé cravavam a segunda estaca a base de marretadas, nosso amigo Pão de queijo se deslocava com a voadeira desligada, passeava sorrindo, apenas puxando pela corda esticada da mesma estaca, só no embalo. Disse: - Ó pessoal que maravilha, ó! Pra que ficar nadando, se desgastando, se é só puxar pela corda ó! Todos o assistiam parecendo um condutor de gôndolas na calmaria das águas quando recebeu uns gritos dos amigos que reclamaram que afrouxou a estaca por causa da fuleragem dele. Uma figura esse Pão de queijo. Após finalizar as estacas e amarras, nossos amigos foram averiguar o equipamento de controle de navegação. Depois de muitas tentativas com iluminação à luz de lanternas, o comandante Zé Ribeiro pediu para que subissem deixando o trabalho para o dia seguinte. Mas há uma suspeita de quebra da hélice e outras peças trancadas.
Todos mais calmos ficamos ouvindo os batráquios a coaxar enquanto relatávamos o que cada um viu e como se sentiu durante o acidente. Em seguida fomos rodeados de Pirilampos, os gaúchos diziam que eram vaga-lumes, mas o Vrena afirmava categoricamente que eram Pirilampos. Devido à carcaça diferenciada, vaga-lume é mais redonda e dura, já o Pirilampo é alongado de casco fino. O cara conhece! Argumentou que o vaga-lume chega perto da luz e o Pirilampo não, o que de fato aconteceu ficavam distantes da embarcação. Na seqüência peguei o violão e ficamos ali tocando e cantando acompanhados do som dos batráquios, imaginando os jacarés em volta, observando os pirilampos e contemplando as estrelas, que juntas à luz do luar iluminavam nosso luau.
Amanhã cedo o pessoal mergulhará novamente para verificar se temos condições de deslocamento até o distrito de Auxiliadora para um auxilio maior no diagnóstico do problema. Foi inevitável o trocadilho neste dia tão atípico!

Vamo que vamo!!


Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão